A arte de saber pausar o jogo
Praticado por indivíduos heterogéneos, o futebol sempre foi um reflexo daquilo que a sociedade nos dava. Encontrar determinado contexto — que hoje em dia é fundamental para perceber a rotina de um clube — podia passar por uma análise extensiva sobre determinado grupo aonde pairasse o gosto pela bola. Aliás, como pessoas que se interligam facilmente através de relações socioculturais, temos de ter presente que antes de jogador de futebol, o jogador é um ser humano. Logo, o reflexo do seu futebol é aquilo que o mesmo faz e a forma como age durante o dia a dia.
Atualmente, após um futebol heterogeneizado e com diferentes vivências, caminhamos para um futebol homogéneo aonde a criatividade não impera, aonde não existe calma, aonde tudo é feito de forma robotizada e se esquece a essência daquele que em tempos foi o desporto mais bonito de ser assistido. E isso é o reflexo da população mundial. Da mesma maneira que queremos estandardizar o mundo do futebol, a sociedade já o fez após a aplicação do modelo fordista aquando da revolução industrial. Ou seja, esquece-se a parte humana do jogador de futebol e passou-se a agir como se todos fossem parte de um automóvel, por exemplo, o que em termos futebolísticos corresponderia a uma equipa. Pensando bem, até parece que o futebol está atrasado. Mas não, deve caminhar a seu próprio ritmo e belo prazer para que não se perca naquilo que hoje em dia é fundamental para todos os indivíduos: o tempo.
E porquê o tempo? Se olharmos à nossa volta vemos pessoas a correr desenfreadamente em tudo aquilo que fazem, seja para apanhar o próximo comboio, seja para fazer o jantar para a família. Nem quando se deitam as pessoas param para pensar. Ou pegam em dispositivos eletrónicos, ou procuram adormecer o mais rapidamente possível, não para saborear o descanso, mas para aproveitar a manhã fresquinha do dia seguinte. É legítimo pensar assim? Talvez. Mas, e no futebol? Como funciona?
Como disse no início, o futebol é o reflexo da sociedade. Logo, se temos uma sociedade acelerada… também temos um futebol que procura acelerar constantemente e que ignora por completo os indicadores de aceleração. Acelerar de forma continuada um jogo de futebol acarreta problemas: mais rapidez, menos tempo para pensar, mais decisões precipitadas, menos critério, mais perdas de bola, mais exposição ao risco, maior probabilidade de sofrer em transição ofensiva. E isto acontece várias vezes, todos os fins de semana, e em vários continentes aonde se pratica futebol.
A aceleração constante leva à deterioração do jogo. E isso sucedeu-se esta época com o Manchester City FC. A equipa de Pep Guardiola somou várias exibições horrorosas por querer acelerar, de forma atribulada, o jogo. O próprio treinador explicou-o numa entrevista a Rio Ferdinand, explanando também os benefícios de ter pausa e calma no seu jogo desde que parou para pensar e autocriticar a sua equipa. Escutem.
Ainda que tenha melhorado consideravelmente a pausa da sua equipa, atingindo assim o auge, a equipa de Pep Guardiola fracassou frente ao Chelsea FC, na final da Liga dos Campeões. Não soube como pausar o jogo e acabou por perder o controlo do mesmo, mostrando ainda incapacidade para ferir o bloco baixo da equipa de Thomas Tuchel. Isto porque não atraía o adversário e procurava acelerar sempre por fora, visto que o corredor central tinha pouco espaço e a equipa não sabia como produzir espaço para jogar.
Acelerar é mais fácil do que pausar o jogo. Sendo o futebol um reflexo da sociedade, o jogador tende a corresponder à correria, ao invés da pausa e da calma para decidir com critério. Por isso mesmo é que podemos chamar arte à capacidade cognitiva que um jogador tem para pausar o jogo, visto que está ao alcance de poucos artistas. Caso contrário, seria algo banal, tal como a correria é, e não teríamos, nem espaço, nem tempo, para admirar jogadores como Maradona, Messi, Juan Román Riquelme, Neymar, Verratti, Kimmich, Kroos, ou até mesmo o Délcio, um miúdo que joga frequentemente no ringue da minha rua e se destaca por pausar o jogo e decidir sempre bem.
A propósito, João Mário, médio do Sporting CP, concedeu ao Record uma entrevista onde, através de palavras, explana o porquê de ser o jogador mais importante no modelo de jogo de Rúben Amorim. Passo a citar:
Record: “O que sente que conseguiu dar a este Sporting?”
João Mário: “Senti sempre que devia ser aquele jogador que coloca calma no jogo, tinha a responsabilidade de pausar determinados momentos, de fazer a equipa respirar — tinha muito esse peso. Tentei dar mais maturidade ao Sporting, neste caso no processo de ter bola. Fui muito altruísta para que a equipa não se desposicionasse. Não é à toa que sofremos poucos golos.”
Contra a corrente da sociedade atual, João Mário transporta para dentro de campo a calma, a pausa e a razão de ter a batuta da paciência dentro de um clima de frenesim físico e emocional. Foi, nas horas de maior aperto, quem liderou o Sporting CP para estar estável e confortável com bola, enquanto era pressionado ou até mesmo julgado pelos próprios adeptos. A sua calma é a personificação da calma que Rúben Amorim apresenta nas conferências de imprensa.
Também o conceituado César Luis Menotti se expressou sobre a beleza de saber pausar jogo:
“Hay fútbolistas que dominan ese cambio de ritmo, utilizan la inteligencia, el engaño. Cuándo dan la impresión de frenarse, aceleran y sacan gran ventaja sobre el adversario. Por que de eso se trata, de engañar, no de correr más rápido.”
O papel do treinador
Tal como Pep Guardiola o fez, também nós não podemos esquecer o papel que o treinador tem no sentido de manter a sua equipa calma e pronta para acelerar nos timings acertados. Daí que uma das coisas que um treinador tenha de ter em conta sejam os indicadores de aceleração, os quais têm de ser respeitados pelos jogadores. Existem vários indicadores de aceleração. Um deles pode passar pelo seguinte exemplo: a bola é colocada na zona entrelinhas e a partir daí os elementos que estão à frente da linha da bola têm “autorização” para acelerar através de movimentos de rutura. No fundo, o treinador é o condutor de um carro em viagem: concede aos seus penduras permissão para avançar, retroceder, pausar, acelerar, ou mudar a estação radiofónica.
A opinião de João Almeida Rosa
“Ter quem ofereça essa pausa permite algumas coisas importantes. Desde logo, julgo que no futebol mais importante do que a velocidade é a mudança de velocidade. A partir daí, é necessário que a equipa consiga identificar e gerir bem os timings do jogo. Se o adversário está organizado, provavelmente é necessário tocar, atrair e, só quando geramos espaço, então acelerar. Mas antes de acelerar, foi precisa a tal pausa – o toque, a «manipulação» do adversário, etc. Depois, também é importante muitas vezes que os jogadores entendam que nalgumas fases do jogo não interessa acelerar muito nem partir o jogo. A ganhar no final, por exemplo, há que guardar a bola. «Meter gelo», que nesse momento é sinónimo da tal pausa.” – João Almeida Rosa, treinador-adjunto da equipa feminina do Sporting CP e comentador na Eleven Sports
Por fim, uma compilação de Juan Román Riquelme, aquele que, provavelmente, foi o jogador que melhor soube pausar o jogo na história do futebol.