Intervir no jogo: até que ponto?

Raumdeuter
5 min readMay 14, 2021
Marcelo Bielsa, um dos treinadores mais expressivos quando intervém no jogo

O jogo de futebol é um autêntico caos. Quando colocamos uma equipa contra a outra criamos a balbúrdia total. O papel do treinador passa por criar os caminhos indicados para que todos os seus jogadores estejam num trilho que vá dar ao mesmo final. Além do papel preponderante que o treinador e seus adjuntos têm no treino — onde podem intervir, receber feedback, ajudar, aconselhar ou modificar — , cada vez mais se discute a importância do mesmo durante os 90 minutos de jogo. Porém, coloca-se uma questão pertinente: até que ponto um treinador deve intervir no jogo? Tem toda a legitimidade para atuar a qualquer segundo, ou deve procurar momentos específicos para o fazer?

O papel do treinador passa por variados capítulos. Na minha ótica, o treinador é o cerne de tudo num clube e sem o mesmo é impossível capitalizar qualquer tipo de matéria-prima. Independentemente da qualidade de um plantel, o treinador tem sempre de ser aquele que tem maiores qualidades e vicissitudes para mexer com o jogo, a menos que tenhamos criativos como Neymar, ou jogadores inventivos como Lionel Messi. Nesse caso, o treinador tem a vida facilitada e deixa de ser o maior protagonista.

Apesar de todo o frenesim emocional que é gerado em torno de um jogo de futebol, o treinador tem de se manter racional durante os 90 minutos, de modo a que as suas decisões possam ser bem ponderadas, para que sejam acertadas. Desta forma, é possível chegar a uma conclusão: menos é mais. Ou seja, quanto mais racional for um treinador e quanto mais refletir sobre as suas decisões, melhor serão as mesmas e menores serão as vezes em que tem de intervir. Como é óbvio, existem jogos onde é necessário um constante contacto com o principal interveniente do jogo. Porém, em condições normais, o treinador deve deixar o jogo fluir.

Porque deve o treinador deixar o jogo fluir, questionam-se vocês neste momento. É simples: tem tudo que ver com feedback. Se um treinador passar a vida a intervir no jogo e a procurar interferir nas decisões dos jogadores, as quais influenciam o jogo, o treinador vai receber pouco feedback e está, de certa forma, a robotizar os seus pupilos, pois quando estes têm de tomar uma decisão vão sempre fazê-lo de acordo com a última indicação que ouviram e nunca de acordo com aquilo que a sua veia criativa e inventiva diz. Caso contrário, ou seja, se o treinador for menos interventivo, deixará a libertinagem do jogador decidir por ele. Isto permite ao treinador receber mais feedback e, ao mesmo tempo, pensar de forma concisa e consistente sobre a forma como, posteriormente, vai colocar o seu dedo no jogo. Além disso, permite-lhe perceber aonde tem e aonde não tem de intervir.

Um treinador que está constantemente a intervir no jogo limita os seus jogadores e pode, até a um certo ponto, colocar-lhes medo na hora da decisão. E no que resulta esse medo? Em decisões mais conservadoras, não tanto perspicazes e nada criativas. Além disso, pode mesmo resultar numa criação de stress no jogador, caso o mesmo esteja a ser constantemente a ser controlado e a ser chamado àquilo que o treinador considera ser mais benéfico para a equipa.

O jogo é dos jogadores. Devemos, por isso, deixá-los decidir como o seu cérebro indica. Caso façamos o oposto, nunca estaremos a dar liberdade criativa, nem capacidade de assumir o jogo ao maior interveniente do futebol. É certo que muitos adeptos, principalmente em Portugal, gostam de ver treinadores loucos com as suas equipas e extremamente intervenientes no jogo. Porém, isso pode trazer mais malefícios do que benefícios. É uma questão de racionalidade e aproveitamento do tempo de intervenção: mais racionais, maior aproveitamento, em menos tempo de intervenção.

Para corroborar a minha reflexão procurei a opinião de alguns treinadores:

“Depende da personalidade de cada um. Não há uma regra.” — Blessing Lumueno, treinador de futebol dos juniores «A» do GD Estoril-Praia

“Hoje creio que, na formação, é preciso ter muita ponderação no tipo de intervenções que se tem, para não retirar aos jogadores independência no jogo, porque senão estamos a criar habituação em relação a alguém que está de fora e que «oferece» sempre a solução para o problema, e isso é precisamente o contrário do que se quer na formação.” — Mariana Cabral, treinadora de futebol da equipa B de futebol feminino do Sporting CP

“Penso que em contexto de formação (principalmente em idades mais baixas) é positivo ser moderado na forma como se dá indicações, seguindo uma ideia de «liberdade com responsabilidade» para que possam errar e aprender. No futebol de rendimento, é uma questão de estilo. Mas não há dúvidas de que a postura do treinador tem quase sempre reflexo no que a equipa procura fazer, de forma mais ou menos serena. É importante, no futebol atual, que o treinador tenha um papel ativo no banco. Há muitas mudanças a acontecer e as correções precisam de ser feitas em tempo real – de preferência, com indicações simples e entendíveis. A Bundesliga é um exemplo, nesse sentido. Não podemos confundir feedback com «gritos» de motivação/reclamação para dentro de campo. Aí, sobretudo no futebol de formação, pode ser mais prejudicial do que outra coisa.” — Tomás da Cunha, treinador de futebol UEFA C e comentador na Eleven Sports e na TSF

“O treinador deve ser aquilo que a sua equipa precisar a cada momento. Ele deve ter alguma plasticidade na forma como lidera a partir do banco. Se a minha equipa é claramente favorita, será importante não permitir que ela “adormeça”. Se somos claramente inferiores ou a equipa duvida de si própria, provavelmente é importante ajudar a “guiar” o jogo; passar energia para dentro de campo. Noutras alturas é importante passar apenas confiança, através duma postura sóbria, de tranquilidade. É importante conhecer os nossos jogadores e todo o contexto do jogo. O treinador também pode e deve comunicar com a equipa através de substituições. As mesmas podem dar confiança ou retirá-la. Juntamente com a equipa técnica, rapidamente deve perceber-se como se dispõe o adversário em campo e controlar se a nossa equipa está a procurar fazer as tarefas de jogo definidas e com que eficácia. É fundamental e aqui não pode haver contexto ou fatores que impeçam que esta análise aconteça e que seja constante durante todo o tempo do jogo.” — João Ferreira, treinador de futebol UEFA A

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Raumdeuter

“O futebol é um jogo que se joga com o cérebro. Tens de estar no lugar certo, no momento certo. Nem antes, nem depois.”