Os Gatekeepers do Futebol

5 min readJul 5, 2021
Quique Sétien ao serviço do Real Betis Balompié

Além de ser o reflexo da consagração de várias modalidades, o futebol é um desporto onde coabitam várias categorias de diferentes ciências. Como tal, podemos afirmar que existem vários momentos do atletismo, ou do basquetebol, no futebol, mas também de ciências, como a sociologia, a física quântica, a química, ou a matemática. No fundo, se queremos estar preparados para dominar o futebol, temos de nos assumir como mentes abertas para a absorção de diferentes matérias que nos podem ajudar, ou na identificação de talento, ou na forma como estabelecemos relações intersubjetivas com os jogadores.

Hoje, procuro assimilar uma vertente do jornalismo ao futebol. Lecionada, normalmente, em unidades curriculares como Teorias do Jornalismo, a Teoria do Gatekeeper, de David Manning White, é uma matéria que está presente em várias facetas do desporto que todos assistem, racionalizam, consomem e adoram.

O termo gatekeeper surgiu em 1947 num artigo publicado pelo psicólogo social Kurt Lewin, aonde o mesmo abordava as decisões domésticas relativas à aquisição de alimentos. Mais tarde, em 1950, David Manning White fez um transfer para o jornalismo, tornando-se o primeiro a aplicar o conceito nesta área e originando uma das mais persistentes e prolíferas pesquisas sobre notícias.

Diagrama da Teoria do Gatekeeper

Gatekeeper é, segundo Nelson Traquina: “a pessoa que toma uma decisão numa sequência de decisões”. Isto é: no processo de produção de uma notícia, aquilo que é concebido segundo a noticiabilidade de um acontecimento como uma notícia tem, obrigatoriamente, de passar por várias gates, isto é, momentos de decisão aonde o jornalista — o gatekeeper — decide se avança ou não com a elaboração da mesma. Como é possível ver na imagem acima, se a decisão for positiva, a notícia passa pelo “portão” e está mais próxima da audiência. Caso contrário, a notícia é dada como morta e não será publicada naquele órgão de informação específico. No fundo, todos os seres humanos que racionalizam são gatekeepers, visto que no processo de racionalização sobre determinado assunto, acabamos por eliminar aquilo que consideramos ser abjeto.

A Teoria do Gatekeeper num Jogo de Futebol

Patrick Berg, um dos jogadores mais criteriosos do futebol nórdico

Teríamos, obrigatoriamente, de começar pelo jogo e, de forma bastante previsível, pelo seu principal interveniente: o jogador. Dentro do caos que é uma partida de 90 minutos o jogador de futebol é obrigado a fazer com que o seu jogo passe por várias gates de forma a conseguir ser explícito e esclarecido perante a sua audiência: o público, os colegas, ou os treinadores. Durante esse processo, o atleta usa o leque de armas técnicas, físicas, táticas, ou psicológicas, que tem ao seu dispor, o que, além de lhe permitir tomar a melhor decisão, lhe permite diminuir o caos que o jogo é. Tomemos como exemplo uma situação de um para um: o portador da bola tem de fazer aquele momento passar por vários “portões” e só através disso irá decidir se toma uma decisão mais aberta, como o drible, ou se é mais conservador e procura um passe seguro para trás; por outro lado, o jogador que defende terá de, no seu leque de armas defensivas, definir como posiciona o corpo, se procura o duelo individual, ou se fica na contenção, se fecha o corredor central, ou se fecha uma linha de passe.

Kasper Hjulmand, um dos melhores treinadores do Campeonato da Europa de 2020 pela sua direção de campo

Depois do jogador, segue-se o treinador. Este é aquele que talvez tenha de aplicar a Teoria do Gatekeeper de forma mais constante. O treinador, no seu início de carreira, é um humano que ainda não tem bem identificada a maneira como quer lidar com o jogo. Conforme vê futebol, que é um todo, o treinador faz com que o mesmo passe por várias gates de forma a selecionar aquilo com que mais se identifica. A partir desse processo, irá acabar por definir se pretende jogar de forma apoiada, se prima pelo jogo direto, se quer defender em bloco baixo, ou alto, o tipo de pressão e os jogadores que quer ter à sua escolha. Além de escolher aquilo com que mais se identifica, o treinador tem de saber de que forma quer dirigir o seu treino, como se vai relacionar com os seus atletas, que tipo de clube vai escolher para se desenvolver e aplicar o seu conhecimento, entre muitos outros quesitos.

A tarefa de scouting também está patente no jogo de futebol. Sendo que os vinte e dois jogadores de campo constituem a fonte de informação, cabe ao scout definir gates para ir eliminando os jogadores que não lhe interessam, fazendo-os passar de “porta” em “porta” até chegar ao tipo de jogador que é pretendido. Se eu for à procura de um jogador tecnicista e que decida bem, provavelmente terei de ir eliminando aqueles que não têm uma boa relação com a bola, e depois ter em atenção aqueles que definam mal, e por aí adiante. No fundo, a tarefa de scouting é um ciclo constante da aplicação da Teoria do Gatekeeper.

A Teoria que David Manning White popularizou no seio do jornalismo serve como base para todas as reflexões que tomamos, seja no futebol, ou na compra de roupas num Centro Comercial. Os nossos princípios e ideias são os nossos gates, sobre os quais fazemos passar, ou não, aquilo com que nos identificamos mais. Esta Teoria aponta para a necessidade de reflexão que existe sobre tudo aquilo que fazemos. Refletindo, estaremos mais próximos de aprender e de chegar a bom porto, desde que as pedras basilares sobre as quais colocamos as nossas decisões sejam reais e racionais.

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Raumdeuter
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Written by Raumdeuter

“O futebol é um jogo que se joga com o cérebro. Tens de estar no lugar certo, no momento certo. Nem antes, nem depois.”

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